quinta-feira, 8 de julho de 2010

Orquídea Negra - Parte 2



"Está sendo uma noite de um dia difícil
E eu estive trabalhando como um cachorro.
Está sendo uma noite de um dia difícil,
Eu deveria estar dormindo como um tronco"

- Beatles, A hard day's night

Londres, Inglaterra

Por mais que eu não me lembre de nada quando acordo, gosto da sensação de estar na Inglaterra. Esta terra já fora minha casa por mais de uma vez, e digam o que disserem sobre ela, sinto falta desta ilha.

- É ótimo estar em casa! Disse ao chegar no Reino Unido.
- Fale por você - disse Lúcia irritada - seu lobo Saxão.
- Qual o seu problema com Saxões? Indaguei curioso.
- Simples, eles nascem, respondeu seca.

Ignorei o mau humor, embora soubesse que era por minha culpa, mas tinha coisas a resolver.
Diferente da Espanha, nossa chegada na Inglaterra não chamou atenção.
Estávamos de frente ao famoso Big-Bem. O monumento estava muito iluminado e bonito, como se houvesse energia extra-sensorial nele, que não apenas sua iluminação elétrica normal.
Víamos um movimento grande pelas ruas. Pessoas de diversas épocas transitavam livremente misturadas a uma só. Logo ninguém se importara com um cavaleiro errante acompanhado de um lobo.
Conferi novamente o papel que o velho livreiro havia me entregado na Espanha. Mentalizei o nome da mulher que eu procurava e quando voltei a olhar ao meu redor, vi que um ponto brilhava mais ao longe em meio a uma mata.
Acelerei o passo, e corri em direção a ele.
Senti Lúcia me acompanhando, e de uma forma que apenas no espiritual acontece, um salto longo foi o suficiente para chegarmos ao ponto luminoso.
Caímos no meio de uma floresta.
Paramos para reconhecer o local e logo surgiram vozes , música, ruídos de um ritual, ou uma festa.
- Estranhos! Estranhos!-Dizia uma voz fraca que soava como um zumbido.
- Que coisa é essa? Perguntei.
- Uma fada ou uma espécie dela, algo como uma larva que um dia vai virar uma borboleta, concluiu Lúcia.
- A floresta parece estar cheia delas, percebi.
- Estamos em uma floresta inglesa, em um plano espiritual dela. Tudo que imaginar, tudo que já leu nos contos de fada podem estar aqui, explicou Lúcia, a Loba.
- De onde você vem, para ter tanto conhecimento disso tudo? Perguntei ao me surpreender com a familiaridade de Lúcia com o local.
- Diferente de você que é encarnado, eu vivo no mundo espiritual. Não sou apenas um visitante, desconversou Lúcia.
- Continuo achando que você ainda não me perdoou pela demora, assenti resignado.
- Perdoei sim, só estou esperando outras oportunidades para me vingar meu amado, disse Lúcia.

Nisso percebo as criaturas da floresta nos cercando. Alguns homens e mulheres, seminus, com armas primitivas, pintados e acompanhados de cães e pássaros se aproximavam de nós furtivamente.


Um homem enorme de barba, vestido com peles toma a palavra:
- Cumprimos nossa parte cão Saxão! Agora faz a tua! Tira tua carcaça imunda daqui antes que eu resolva aceitar teu insulto! Essa terra é nossa e não queremos tua laia aqui! Bradou o homem, obviamente me confundindo com um inimigo.

Respirei fundo e tentei me acalmar.
Meu instinto de luta começava a ferver dentro de mim, mas sabia que não ia adiantar nada entrar em conflito com eles.
-Não faça nada contra eles, avisou Lúcia baixinho para mim.
-Por quê? Eles querem nos atacar, respondi no mesmo tom.


-Eles são os Pictos. Junto com os Bretões combateram os Saxões há muitos séculos atrás. Por causa do seu cabelo claro, eles acham que você é um Saxão, inimigo mortal deles.
Eu não queria lutas desnecessárias, então respirei fundo e tentei o diálogo:

- Grande líder, não venho aqui para insultar seu povo, estou atrás de alguém que esteve aqui faz pouco tempo, apenas isso. Então estiquei o papel que havia me dado na Espanha.
Um homem manco veio correndo até mim, pegou o papel, saiu correndo de volta e o entregou ao líder. Ele abriu um sorriso ao ler o papel, falou algo que não consegui entender, e todos riram juntos.

- Esta vadia que você procura....tentou nos prestar respeito, mas no final acabou nos ofendendo, disse o homem ao ver que procurávamos Orquídea Negra. -Ela não sabe as luas corretas para nos agradar e nem as preces certas. Ela queria estar livre dos problemas que ocorreram no mundo físico, mas fez tudo errado. Por que você quer achar esta mulher? Perguntou o líder.
- Para fazê-la pagar, óbvio!! Menti, tentando ganhar sua simpatia e resolver logo a questão.

- Pois eu digo que vá a merda! Vá fornicar com os porcos! Gritou o líder Picto.
As pessoas riram, meu sangue ferveu, ele sabia que eu estava mentindo.

- Acha que me engana? - Continuou - Um cão maldito reconhece outro! Quero preço por essa informação!
Preço.

Na magia, no mundo espiritual, no mundo terreno.
Tudo tem um preço.
Não se pode tirar água sem deixar outro local com sede.
Quando se invoca os ventos, eles deixam de soprar em outro lugar e por aí vai.
O mesmo acontece aqui. Tudo tem um preço, e para a informação que eu precisava deveria pagar por ela.
Resignado com essas irritantes permutas, tentei me acalmar mais uma vez, então deixei meus pensamentos e voltei a questão:
- O que posso lhe oferecer grande líder?
Parou por uns instantes, coçou a barba então abriu um sorriso malicioso.
- Esse teu cão, é mágico não é? Quero ele, determinou o líder Picto.
- É uma loba, expliquei, e ela está fora de qualquer acordo.
O sorriso dele acabou.
- Então não terá a maldita informação, Saxão maldito!!! Gritou furioso.
Virei-me para Lúcia: - Vamos embora.
Porém ao me virar, escutei mais uma vez aquela voz irritante:
- Então tu achas que entra nas minhas terras e vais embora sem pagar nada? Quero um tributo por colocar tua presença imunda no que é meu! Quero a loba! Ameaçou o líder Picto.
Comecei a falar algumas palavras em voz baixa, olhei para ele mais uma vez.
- Vai me dar a droga da loba ou não? Cobrou o Picto.
Apenas balancei a cabeça negativamente.
O maldito riu, soltou as peles que o cobriam, segurou um tacape, alguns cães começaram a rosnar e a andar na minha direção.
Por fim terminei de dizer as palavras que eram necessárias. Sempre fui orientado a ser educado no mundo espiritual. Mas agora não havia mais tempo para barganhas e gentilezas. Eu estava sem tempo, sem paciência e ainda não havia chegado ao meu objetivo.
Então as palavras que eu havia proferido fizeram efeito.
Gritos de ameaças e zombarias foram substituídos por gritos de guerra indígenas, e lobos vindos de longe surgiram ao meu lado.
Abandonei minha forma humana e retomei minha forma de Lobo Branco do tamanho de um elefante.
Lúcia aumentou seu tamanho e se preparou para a luta. Minha tribo estava comigo agora, minha alcatéia.
Pronta para a guerra.
Se aquele homem estúpido queria uma briga, ele teria uma. Um cão maldito reconhece outro.

"E eu sinto meus músculos contraindo, sinto meu estômago rasgando,
Sei que não sou um homem, conheço minha cabeça por dentro,
É o sangue dos lobos, está pulsando como se fudesse minhas veias"
Misfits - Wolf's blood.


É curioso como em livros, filmes, etc, o mocinho apanha por intermináveis minutos e depois milagrosamente começa a reagir como se não tivesse sofrido nem um arranhão e que nem estivesse cansado. O velho clichê do herói. Funciona bem nos cinemas. Pena que não é real.

Quem escreve essas coisas, deixa bem claro que não sabe de nada. Geralmente uma luta de verdade não passa de alguns segundos, minutos, frações. Qualquer sinal de fraqueza, distração e cansaço podem ser fatais. Tudo é muito rápido e cruel, e se torna ainda mais rápido e cruel quando a euforia toma conta de você. A selvageria, a violência, a loucura. Tudo se mistura até você retroceder aos seus instintos mais primitivos. Mesmo após séculos de evolução humana, a euforia convoca nossos instintos de sobrevivência mais primitivos. Nem mesmo vivendo na Era Digital, não conseguimos apagar isso do nosso DNA.

O que me lembro daquela noite foi de deixar meus instintos falarem mais alto, deixar a euforia tomar conta de mim. E na forma de animal que eu assumi, o lobo Branco, ela chega muito mais rápido. Diferente dos humanos, os animais não lutam contra seus próprios instintos.
Lembro também daquele maldito se transformar em um urso e tentar me asfixiar mas não deu certo. O resto foi uma sinfonia de arranhões, mordidas, rosnados, gritos, sangue e escoriações.

Até nós dois percebermos que todos haviam parado de lutar, menos nós. O líder Picto se transformou novamente em humano, e eu mentalizei um guerreiro índio que eu já havia sido em uma vida passada. Novamente na forma humana, agora como um guerreiro índio norte-americano, em minhas mãos surgiram um tacape e uma machadinha. Saltei contra ele furiosamente, mas fui golpeado no rosto por ele. Escutei um grito, talvez alguém do seu povo, torcendo por ele, elogiando o golpe. Cambaleei para trás, levei uma cabeçada em seguida, depois fui agarrado e arremessado para longe.


Levantei-me com dificuldade.
Ergui a cabeça e vi que meu adversário ria e batia no peito, mostrando estar forte e pronto para mais. Aquilo me irritou e arremessei a machadinha de onde eu estava acertando-o bem no seu rosto. A machadinha cravou fundo e eu escutei ele gritar de dor. Corri em sua direção e bati com toda a força o tacape na sua cara. Fui repetindo os golpes até a machadinha se soltar daquela cara imunda. Então escutei meu povo gritar comemorando meu contra ataque.
Quando ele caiu no chão, eu não parei de golpear.
Ainda assim ele pôs as mãos para evitar os golpes, então os golpes começaram a acertar seus braços também. Os braços e o rosto do inimigo sangravam, mas ele não parava de se defender, e eu de bater.
Senti um chute curto do adversário nas minhas pernas, mas ainda assim não parei de atacar até sentir um outro chute no joelho esquerdo. Não chegou a levar minha perna para trás, mas o golpe me deixou dormente, dolorido.
Pressentindo que eu podia cair, resolvi me deixar cair em cima ele, na forma de Lobo Branco.
Imediatamente ele assumiu a forma de urso, e enquanto eu mordia seu pescoço ele enfiava as garras nas minhas costas e cabeça. A luta havia tomado um novo fôlego e nenhum dos dois queria ceder.
Continuei a ouvir gritos da minha tribo e dos Pictos. Mas desta vez os dois lados, índios e pictos gritavam, até que algo nos chamou atenção, algo que acontecia ao nosso lado:
Um velho feiticeiro celta, um druida estava sentado ao lado de um velho índio da minha tribo. Estavam conversando sentados e olhando para nós, falavam um com o outro, sem tirar os olhos de nós.

Ambos riam e apontavam em nossa direção.
Percebendo isso paramos com a luta, meio sem graça.
Afastamo-nos empurrando um ao outro, e retornando a nossa forma humana.
Para mostrar que não estava machucado, meu orgulhoso adversário limpou o sangue do rosto, cuspiu no chão e fez sinal negativo com a cabeça, como se aquilo não tivesse sido nada, então seu povo gritou.
Eu juntei a machadinha do chão com pedaços de cabelo e sangue do homem-urso, ergui em direção ao meu povo e todos gritaram em júbilo.
Depois, andamos meio tortos em direção aos homens sagrados: o Druida e o Cacique.
E antes que eu pudesse perguntar o porquê do Grande Chefe estar lá, ele se adiantou e me respondeu:
- Pequeno Sol estava demorando para me trazer lenha, fiquei com frio e vim ver aonde ele estava. Vim parar aqui. Explicou o Cacique da minha tribo.
Pequeno Sol é o membro mais novo da minha alcatéia. Era chamado assim, pois era jovem, pequeno e tinha a pele mais clara da tribo. Tão clara e dourada que brilhava à luz do sol.

Boatos na época do seu nascimento diziam que era mestiço, filho de um soldado americano com uma índia.
Mas tudo não passava de uma brincadeira, até isso chegar aos ouvidos de algum general bêbado que não admitia miscigenação racial, e nem uma piada tola. Sem dar muita satisfação, chacinou toda a aldeia de seu povo.
Mas isso é passado, e outra história.
O que aconteceu não entristece mais Pequeno Sol e seu povo se juntou à Grande Tribo, onde irmãos não precisam matar uns aos outros e não precisamos mais caçar, matar nossos irmãos animais para sobreviver.
- Ah! -disse o Grande Chefe, como se lembrasse de algo trivial - Este é Nergal, um feiticeiro Druida desta ilha.- E este Lobo Branco sem educação, é meu filho, o Xamã. Disse o cacique ao seu novo amigo Druida.
Baixei a cabeça em respeito e vergonha. Então Nergal olhou para o homem-urso e disse:
- Saudações jovem Xamã! Este urso fedido é Borek! Borek, cumprimente-o!
Ordenou o Druida.


Ele esticou a mão meio resignado e a contragosto.
Olhou-me seriamente nos olhos para me cumprimentar.
Embora eu ainda quisesse pular em seu pescoço e arrancá-lo com todas as minhas forças, não podia ser rude em não retribuir a saudação.
Apertei sua mão, então ele me puxou para perto dele, me abraçou e riu alto. Senti um cheiro de suor horrível, e uma falta de ar. Desvencilhei-me dele, recebi um tapa nas costas e um olhar seu de reconhecimento. Falou algo em voz alta que não entendi, e saiu-se de perto de mim.
Quando voltei minha atenção aos dois anciãos, notei que Nergal estava com o meu papel nas mãos:
- Esta mulher que você procura, trabalha em uma loja mística. Ou pelo menos trabalhava lá. Esse lugar fica nos arredores de Londres. Concentre suas energias no que anotei e você chegará lá, explicou o Druida Nergal.
Agradeci humildemente, e o resto da minha tribo se aninhou próximo ao Grande Chefe quando este se levantou. O Cacique e Nergal se abraçaram, conversaram algo que não entendi e se afastaram cordialmente.
Um portal se abriu. Grande Chefe me olhou sorridente e perguntou:

- Quem vai me levar de volta?

Meus irmãos que estavam ao meu redor, um deles lembrou:
- Pequeno Sol lutou bravamente!
Olhei por reflexo para meus irmãos, e Lobo Cinzento acenou com a cabeça positivamente.
- Pequeno Sol os levarão, podem ir.
Nosso jovem lobo abriu um sorriso, retornou à forma lupina e falou alto:
- Eu vou à frente, vocês me sigam, anunciou Pequeno Sol exultante.
Todos riram, "Nunca mais digam isso a ele!", brincaram enquanto entravam no portal e retornavam à tribo.
Mentalmente pedi a Lúcia que fosse com eles. -"Nem pensar", disse ela.
Então por fim meu povo se foi. Eu fiquei, pois ainda tinha um lugar para ir e uma pessoa para achar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário