"Está sendo uma noite de um dia difícil
E eu estive trabalhando como um cachorro.
Está sendo uma noite de um dia difícil,
Eu deveria estar dormindo como um tronco"
- Beatles, A hard day's night
Londres, Inglaterra
Por mais que eu não me lembre de nada quando acordo, gosto da sensação de estar na Inglaterra. Esta terra já fora minha casa por mais de uma vez, e digam o que disserem sobre ela, sinto falta desta ilha.
- É ótimo estar em casa! Disse ao chegar no Reino Unido.
- Fale por você - disse Lúcia irritada - seu lobo Saxão.
- Qual o seu problema com Saxões? Indaguei curioso.
- Simples, eles nascem, respondeu seca.
Ignorei o mau humor, embora soubesse que era por minha culpa, mas tinha coisas a resolver.
Diferente da Espanha, nossa chegada na Inglaterra não chamou atenção.
Conferi novamente o papel que o velho livreiro havia me entregado na Espanha. Mentalizei o nome da mulher que eu procurava e quando voltei a olhar ao meu redor, vi que um ponto brilhava mais ao longe em meio a uma mata.
- Estranhos! Estranhos!-Dizia uma voz fraca que soava como um zumbido.
- Que coisa é essa? Perguntei.
- Uma fada ou uma espécie dela, algo como uma larva que um dia vai virar uma borboleta, concluiu Lúcia.
- A floresta parece estar cheia delas, percebi.
- Estamos em uma floresta inglesa, em um plano espiritual dela. Tudo que imaginar, tudo que já leu nos contos de fada podem estar aqui, explicou Lúcia, a Loba.
- De onde você vem, para ter tanto conhecimento disso tudo? Perguntei ao me surpreender com a familiaridade de Lúcia com o local.
- Diferente de você que é encarnado, eu vivo no mundo espiritual. Não sou apenas um visitante, desconversou Lúcia.
- Continuo achando que você ainda não me perdoou pela demora, assenti resignado.
- Perdoei sim, só estou esperando outras oportunidades para me vingar meu amado, disse Lúcia.
Nisso percebo as criaturas da floresta nos cercando. Alguns homens e mulheres, seminus, com armas primitivas, pintados e acompanhados de cães e pássaros se aproximavam de nós furtivamente.
Um homem enorme de barba, vestido com peles toma a palavra:
- Cumprimos nossa parte cão Saxão! Agora faz a tua! Tira tua carcaça imunda daqui antes que eu resolva aceitar teu insulto! Essa terra é nossa e não queremos tua laia aqui! Bradou o homem, obviamente me confundindo com um inimigo.
Respirei fundo e tentei me acalmar.
-Não faça nada contra eles, avisou Lúcia baixinho para mim.
-Por quê? Eles querem nos atacar, respondi no mesmo tom.
-Eles são os Pictos. Junto com os Bretões combateram os Saxões há muitos séculos atrás. Por causa do seu cabelo claro, eles acham que você é um Saxão, inimigo mortal deles.
Eu não queria lutas desnecessárias, então respirei fundo e tentei o diálogo:
- Grande líder, não venho aqui para insultar seu povo, estou atrás de alguém que esteve aqui faz pouco tempo, apenas isso. Então estiquei o papel que havia me dado na Espanha.
- Esta vadia que você procura....tentou nos prestar respeito, mas no final acabou nos ofendendo, disse o homem ao ver que procurávamos Orquídea Negra. -Ela não sabe as luas corretas para nos agradar e nem as preces certas. Ela queria estar livre dos problemas que ocorreram no mundo físico, mas fez tudo errado. Por que você quer achar esta mulher? Perguntou o líder.
- Pois eu digo que vá a merda! Vá fornicar com os porcos! Gritou o líder Picto.
As pessoas riram, meu sangue ferveu, ele sabia que eu estava mentindo.
- Acha que me engana? - Continuou - Um cão maldito reconhece outro! Quero preço por essa informação!
Na magia, no mundo espiritual, no mundo terreno.
Não se pode tirar água sem deixar outro local com sede.
O mesmo acontece aqui. Tudo tem um preço, e para a informação que eu precisava deveria pagar por ela.
Resignado com essas irritantes permutas, tentei me acalmar mais uma vez, então deixei meus pensamentos e voltei a questão:
Parou por uns instantes, coçou a barba então abriu um sorriso malicioso.
O sorriso dele acabou.
Porém ao me virar, escutei mais uma vez aquela voz irritante:
Por fim terminei de dizer as palavras que eram necessárias. Sempre fui orientado a ser educado no mundo espiritual. Mas agora não havia mais tempo para barganhas e gentilezas. Eu estava sem tempo, sem paciência e ainda não havia chegado ao meu objetivo.
Então as palavras que eu havia proferido fizeram efeito.
Gritos de ameaças e zombarias foram substituídos por gritos de guerra indígenas, e lobos vindos de longe surgiram ao meu lado.
Se aquele homem estúpido queria uma briga, ele teria uma. Um cão maldito reconhece outro.
Sei que não sou um homem, conheço minha cabeça por dentro,
É o sangue dos lobos, está pulsando como se fudesse minhas veias"
Misfits - Wolf's blood.
É curioso como em livros, filmes, etc, o mocinho apanha por intermináveis minutos e depois milagrosamente começa a reagir como se não tivesse sofrido nem um arranhão e que nem estivesse cansado. O velho clichê do herói. Funciona bem nos cinemas. Pena que não é real.
Quem escreve essas coisas, deixa bem claro que não sabe de nada. Geralmente uma luta de verdade não passa de alguns segundos, minutos, frações. Qualquer sinal de fraqueza, distração e cansaço podem ser fatais. Tudo é muito rápido e cruel, e se torna ainda mais rápido e cruel quando a euforia toma conta de você. A selvageria, a violência, a loucura. Tudo se mistura até você retroceder aos seus instintos mais primitivos. Mesmo após séculos de evolução humana, a euforia convoca nossos instintos de sobrevivência mais primitivos. Nem mesmo vivendo na Era Digital, não conseguimos apagar isso do nosso DNA.
O que me lembro daquela noite foi de deixar meus instintos falarem mais alto, deixar a euforia tomar conta de mim. E na forma de animal que eu assumi, o lobo Branco, ela chega muito mais rápido. Diferente dos humanos, os animais não lutam contra seus próprios instintos.
Lembro também daquele maldito se transformar em um urso e tentar me asfixiar mas não deu certo. O resto foi uma sinfonia de arranhões, mordidas, rosnados, gritos, sangue e escoriações.
Até nós dois percebermos que todos haviam parado de lutar, menos nós. O líder Picto se transformou novamente em humano, e eu mentalizei um guerreiro índio que eu já havia sido em uma vida passada. Novamente na forma humana, agora como um guerreiro índio norte-americano, em minhas mãos surgiram um tacape e uma machadinha. Saltei contra ele furiosamente, mas fui golpeado no rosto por ele. Escutei um grito, talvez alguém do seu povo, torcendo por ele, elogiando o golpe. Cambaleei para trás, levei uma cabeçada em seguida, depois fui agarrado e arremessado para longe.
Senti um chute curto do adversário nas minhas pernas, mas ainda assim não parei de atacar até sentir um outro chute no joelho esquerdo. Não chegou a levar minha perna para trás, mas o golpe me deixou dormente, dolorido.
Imediatamente ele assumiu a forma de urso, e enquanto eu mordia seu pescoço ele enfiava as garras nas minhas costas e cabeça. A luta havia tomado um novo fôlego e nenhum dos dois queria ceder.
Um velho feiticeiro celta, um druida estava sentado ao lado de um velho índio da minha tribo. Estavam conversando sentados e olhando para nós, falavam um com o outro, sem tirar os olhos de nós.
Boatos na época do seu nascimento diziam que era mestiço, filho de um soldado americano com uma índia.
- Saudações jovem Xamã! Este urso fedido é Borek! Borek, cumprimente-o!
- Esta mulher que você procura, trabalha em uma loja mística. Ou pelo menos trabalhava lá. Esse lugar fica nos arredores de Londres. Concentre suas energias no que anotei e você chegará lá, explicou o Druida Nergal.
Um portal se abriu. Grande Chefe me olhou sorridente e perguntou:
- Quem vai me levar de volta?
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