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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Orquídea Negra - Parte 03- Final


“Uma tempestade está ameaçando, minha própria vida hoje
Se eu não arrumar algum abrigo, vou esmorecer
Guerra, criança, está a um tiro de distância”

- Rolling Stones, Gimme Shelter
Londres, Inglaterra.

- Ela não está aqui! E é melhor esquecer-se dela! Você tem preocupações maiores no momento! Desabafava Lúcia irritada.
Por mais que eu a ame, eu sempre senti algumas vezes uma certa irritação pelo comportamento de Mulher Gavião e por algumas ações de sua parte que me chatearam profundamente.
Comecei a suspeitar que isso era coisa de sua criação, já que por mais que se tente, acabamos sempre repetindo os mesmos erros de nossos pais. Eu mesmo fiquei anos sem ver meu pai (o encarnado). Quando o vi antes de morrer, em nossas conversas, descobri muitas coisas dele em mim infelizmente.
Certa vez a mãe de Mulher Gavião (já desencarnada) veio fazê-la uma visita, acompanhada de seu orientador espiritual. Quando ela me viu, disparou vários insultos e reclamações, do tipo que não devia estar na casa, etc. Aquilo me chateou bastante, mas esqueci por completo por um bom tempo. Só percebi uma repetição no comportamento das duas, ainda assim há um abismo entre as atitudes de ambas, no modo de viver e ver a vida, mas fato é que as duas já me aborreceram muito.
Agora estou cercado por criaturas mágicas, que me odeiam por causa de uma mulher que não conheço. Ela é irmã de Mulher Gavião, e eu já estou irritado com essa Orquídea Negra antes mesmo de conhecê-la. Começo a perceber um padrão nas coisas, começo a achar que as mulheres dessa família tem a tendência natural a me irritar, embora eu também seja insuportável, convenhamos.
Tinha recebido uma excelente indicação de onde ela (Orquídea) poderia estar. O Druida Nergal sabia aonde ela havia andado, aonde ela havia invocado (erradamente) entidades sem saber o que estava fazendo.
“- Dava para sentir o cheiro de magia mal feita de longe”.- Disse-me –“-E quem diabos faz invocações em seu local de trabalho?”
Tentei retribuir o favor, mas Nergal recusou qualquer oferta de minha parte:
- Eu não fiz nada, e se está atrás dessa mulher sei que não será bem recebido lá. Na verdade lhe fiz um desfavor! Agora vá, e diga a seu pai que irei com muito prazer visitá-lo um dia desses sim? Disse Nergal despedindo-se.
Então eu e Lúcia fomos embora, abrimos um portal, e caímos diretamente na loja mística onde Orquídea Negra trabalhava.
Se parecia como uma loja qualquer de Londres, claro que fisicamente falando. No plano astral, lembrava um letreiro luminoso gigante. Ela vibrava com as energias que irradiavam dela, e notava-se o número de criaturas mágicas ao seu redor, entrando e saindo. Eram poucas na verdade, e tratando-se de um lugar que deveria ser “místico” confesso ter ficado decepcionado de início.
“-A maioria das pessoas que vem em lugares como este, é de mulheres atrás de um homem, curiosos, e pseudo-feiticeiros. Só entidades mais fracas transitam por aqui.“–Explicou Lúcia.
Quando entramos era dia, o que não chegava a ser um absurdo, afinal, estávamos viajando pelo tempo e espaço. A única certeza que tinha era que meu corpo físico estava dormindo, e que era noite no Brasil. De resto entendo que todos esses passos que dei hoje no mundo espiritual podem significar simples 5 minutos no plano físico. Então eu tinha uma eternidade e alguns instantes ao mesmo tempo.
Na frente da loja, uma criatura parecendo um duende me olhou, abriu um sorriso e me dirigiu a palavra:
- Em que posso ajudá-lo cavalheiro?

- Você trabalha aqui?
- Sim! Sim! Faz 10 anos!
- É um duende obsessor - identificou Lúcia – Por não ter muito poder, tenta influenciar os outros para ficar mais forte. Qualquer infeliz manipulável atrás de misticismo barato vira um prato cheio para ele.
A criatura fez cara feia, obviamente irritada com a observação de Lúcia. Diferente das outras vezes, ela não se preocupou em conversar por telepatia comigo, dizendo em alto e bom som o que achava dele.
- Bom, eu não sou um curioso, e estou com pressa. Quero saber se Orquídea Negra ainda trabalha aqui, perguntei ao pequeno “duende”.
O semblante do duende não se alterou, apenas andou para perto de uma gaveta, puxou uns papéis e disse:
-Não, ela não trabalha mais aqui. Porém posso procurar nestes papéis o contato dela. Devo achar em um deles o endereço de onde ela mora, pode ser?
- Se vai me custar algo esqueça, eu mesmo olho a droga dos papéis, respondi resignado.
-Não custará nada, garanto. Só irão embora assim que eu lhes der o que querem, pois preciso de clientes pagantes aqui dentro, explicou o duende.
Não me alterei, entendi que clientes “pagantes” devem ser as vítimas dele, mas eu tinha mais o que fazer do que bancar o super-herói. Se eu fosse lutar contra todos os “bandidos” do mundo espiritual, provavelmente já estaria morto.
Enquanto o duende lia as folhas, olhei ao redor do local. Era a loja de produtos esotéricos clássica: Livros sobre o tema, bugigangas em geral que chamam a atenção mas que pouco ou nada fazem de útil na vida real.
Voltei minha atenção ao perceber Lúcia rosnando e saltando para cima do duende.
Antes que eu pudesse perguntar o motivo, Lúcia adiantou-se:
- Não são papéis comuns, são pergaminhos de invocação!
O duende riu.
- Agora é tarde! Vão todos querer um pedaço bem grande de vocês!
E foi a última coisa que escutei antes de Lúcia rasgá-lo com os dentes.
Senti uma agitação lá fora, e ao sair da loja me vi cercado de mulheres.
Eram cinco: duas velhas deformadas e horrendas, as outras três tinham um rosto normal, nada feio, mas também nada chamativo a não ser pelas pinturas no rosto.
- Então – disse uma das velhas – Se veio atrás de Orquídea Negra, você deve ser algum amigo, ou alguma invocação dela também. Seja o que for quero você, Saxão! Você irradia magia, vai nos ser muito útil!
- Vamos embora!- Disse Lúcia.
- Não, estou cansado disso, só saio daqui quando souber aonde aquela idiota mora!
- Tolo, respondeu Lúcia aflita.
Percebendo que não adiantava dialogar, simplesmente nos concentramos no combate, deixando de lado a irritação de ter de passar por aquilo tudo de novo apenas para saber o paradeiro de uma mulher.
- Só quero saber de uma mulher! – Tentei argumentar.
- Ela não está aqui! - Disse uma das velhas - E é melhor esquecer-se dela! Você tem preocupações maiores no momento!
As duas velhas avançaram em minha direção enquanto as outras três riam alto e coçavam a barriga. Aproveitei que estavam distraídas e ergui um portal abaixo delas. No que ele rapidamente subiu até o seu pescoço, desfiz o portal, fechando a conexão entre os dois locais. Assim os corpos ficaram em outra dimensão, e as cabeças jogadas com vida ficaram na minha frente, como duas maçãs recém caídas de uma árvore. As outras velhas vendo aquilo abandonaram a cautela e saltaram em minha direção. Talvez tivesse sido um erro de tática: eu deveria ter eliminar a ameaça numérica ao invés da mais próxima.
Lúcia saltou sobre uma delas e ambas rolaram para o lado, e eu me concentrei na minha adversária que enfiava as unhas podres em meu rosto enquanto conjurava algum encanto. Quase que por instinto afundei a mim mesmo no chão com um portal, levando os braços daquela bruxa maldita comigo, saí atrás dela, pensei em sacar minha espada, mas não consegui. Galhos de árvore entraram em minha barriga, e a dor tomou conta de mim.

“Londres chama para as cidades distantes.
Agora aquela guerra está declarada e a batalha começa.
Londres chama para o submundo.”
- The Clash - London Calling

Era uma tática bem simples: entro por um portal de um lado, saio de um portal pelo outro.
Deixo os braços daquela velha perdidos em alguma dimensão e ataco por trás (e que se dane quem acha isso covardia), um golpe certeiro de espada e pronto, acabou. Pelo menos era para ser assim. Mas não foi.

Há vantagens e desvantagens de estar encarnado:
No mundo físico passamos por experiências que nos ajudam a evoluir como espírito. Mas perdemos (e muito) nossa conexão com quem nós somos de verdade, de onde nós viemos. Retornando a ele somente em sonhos, e muitas vezes nem nos lembramos disso.
Sou um exemplo perfeito para tal: não lembro de nada quando acordo (e de onde vem o que escrevo?) Não importa, todos temos segredos não? Tenho apenas algumas impressões de ter “sonhado” com algo, ou feito algo, mas nunca é claro, e na maioria dos casos julgo ser nada mais do que um sonho, alguma obra tola da minha imaginação fértil.
Existem as manifestações psíquicas, a manipulação do nosso próprio espírito. Logo podemos assumir a forma que quisermos: lobo, gato, cachorro, urso e etc. Depois de alguns anos trabalhando no mundo espiritual e um pouco de prática, deve ser relativamente simples manipular o espírito e fazer sair de dentro dos braços amputados troncos de árvores vivos como serpentes furiosas e virá-las contra seu inimigo.
Eu pessoalmente diria que a idéia é brilhante, mas com a dor que sentia dos galhos em minhas entranhas (tudo está na minha mente eu sei, mas lembra o que falei sobre estar preso na realidade do mundo físico?) fica realmente difícil dizer algo. Não conseguia dizer nada, só gritar.
Para piorar sentia mordidas em meu “corpo”, as demais bruxas haviam retornado ao combate e se deliciavam vingando-se de mim, gritando, me machucando. Era um banquete, e eu o prato principal. Sem reação nenhuma, as mordidas talvez eu até suportasse, mas os galhos não.
Há momentos em que vale a pena estar na vida terrena, e ignorar o que acontece do outro lado, como 99% da população humana encarnada. Dá vontade também de ter dito na fila de reencarnação algo como: “-Pode passar na frente! Não estou com pressa!”
Mas quando estamos encarnados não adianta lamentar, temos de viver, mesmo que a vida não seja um mar de alegria, temos de ter as vivências.
Algumas vivências são tão tristes que nos destroem por dentro, nos transformando num arremedo de gente, um emaranhado de dor, que nos consomem, até virar algo tão insuportável que sentimos medo. Por fim a sensação eterna de medo nos gera uma revolta em nosso ser, algo brutal nasce dentro de nosso íntimo, e mais uma vez nossos instintos primitivos afloram, como tambores que vão ganhando força, até tocarem tão alto a ponto do nosso corpo não poder mais os ignorar. Junte todo um emaranhado de dor, medo e desespero junto de você.
Então tudo o que precisava para me livrar daquela situação estava finalmente ao meu alcance:

A euforia havia finalmente chegado.
Não há muito que explicar. A dor por um segundo parou e virou uma raiva sem controle. Despedacei meu corpo até virar um falcão. Voei baixo sobre elas para então me transformar em uma Naja gigante. Envolvi todas elas com meu corpo, apertando forte até sentir o estalar de ossos e os gritos silenciarem.
Silêncio.
Retornei a forma humana e vislumbrei o estrago: haviam duas bruxas caídas no chão, secas e tortas como galhos podres, não se mexiam.
Uma outra mulher jovem conjurava algo em uma língua antiga, mas ao me perceber silenciou. Ela se virou e permaneceu em silêncio; ficamos nos olhando.
Finalmente via Lúcia em sua forma humana: mulher jovem, por volta dos 20 anos, cabelos negros como a noite, pele branca como a neve.


Impregnada de magia: Wicca.
Lúcia era uma feiticeira Wicca bretã.
Ela conversava com a mulher que restou de pé, em uma língua que eu não entendia. No fim, percebi que a informação que Lúcia recebera, não a agradara em nada. Balançava negativamente a cabeça , enquanto a bruxa sobrevivente praguejava baixinho ao seu ouvido.
-Vamos, disse Lúcia, ela me contou que Orquídea Negra ofendeu muitas entidades da wicca, e por causa disso, seu nome não é bem quisto por aqui.
Segurei Lúcia pelo braço, meio espantado por vê-la em sua forma humana. Abri um portal sob nós e fomos parar no famoso círculo de pedra: Stonehenge. Empurrei Lúcia contra um menir:
- Pois bem, desde que chegamos no Reino Unido tenho percebido que você fica muito à vontade aqui. E já vi também que você tem muito conhecimento de magia celta. Lúcia você já sabe que eu já tive muitos problemas com esse tipo de história antes, então que tal começar a me contar se o nosso encontro não foi mero acaso, interroguei irritado.
-Tudo bem, respondeu ela. Eu me aproximei de você também porque seria um grande aprendizado para mim. Aprender um pouco de magia com você me daria muito estatus aqui no Espiritual, já que você carrega 5 linhas de magia. Isso é muito raro em uma pessoa só. Você tem a linha da Umbanda, Wicca, Vudu, Magia Oriental e o Xamanismo.
-É só isso Lúcia?
-Sim, respondeu cabisbaixa.
- Ok, mas nada de loba por equanto. Por instinto a abracei e a beijei (como todo homem faria ao ver sua bela namorada), mesmo não tendo tempo pra isso. Sabia que no fundo, havia um perigo inerte nela.
Voltamos à loja e achei o tal endereço. Não era longe de onde estávamos, então fomos procurar aquela mulher idiota, e dessa vez eu não aceitaria mais nada no meu caminho.
“Jorge sentou praça na cavalaria
Eu estou feliz pois eu também sou da sua companhia”
- Fernanda Abreu, Jorge de Capadócia

Subúrbio de Londres

Chegamos a um desses condomínios simples do subúrbio de Londres, onde imigrantes legais e ilegais se misturam com ingleses de baixa renda.
Desta vez a trilha estava bem clara e eu não via nada muito estranho. Caminhamos até o prédio, pelo rastro que só quem está no plano astral pode ver.
Na entrada do prédio, havia um pequenino ser, que parecia guardar a porta. Andava de um lado para o outro, gritando com as pessoas vivas que passavam pelo local. Era uma criatura minúscula. Parecia um filhote de duende: minúsculo, orelhudo e meio dentuço. Os pedestres o ignoravam, pois não o viam. Mas ele fazia questão de demonstrar com todo o barulho possível que era um guardião.
Ele não percebeu nossa presença. Sua atenção era para um homem vivo que passava pela avenida em frente ao prédio cheio de compras, cambaleando para não derrubar nada.
A criatura levanta e o observa, e então grita com ele:
- Ei, ei! O que pensa que está fazendo? Anda caia fora daqui! Anda ,anda! Apressava o pequeno duende o homem que nem em sonhos imaginava que tinha algo ali.
Obviamente o homem não o via, mas a criatura fazia questão de gritar com ele. É algo como um cão separado por uma grade: late e rosna, pois sabe que não podem reagir contra ele, e na segurança da proteção, mostra sua fúria, embora sem as grades talvez ele não fosse tão valente assim.
- É isso aí! Vai andando! Dizia o duendezinho ao “escorraçar” o pedestre incauto.
- É aqui! –Disse Lúcia, apontando para o prédio onde o pequeno duende guardava.
- E o que é isso? Perguntei sobre o duendezinho atrevido..
- Era pra ser um guardião, mas é apenas um espírito da floresta. Ele está preso aqui por algum encanto, explicou Lúcia.
- E porque alguém traria esse cara para cá?
-Isso foi uma tentativa de convocar um guardião, disse Lúcia. E deu nisso, apontou.
-Eu? Indagou o duende baixinho, ao perceber que discutíamos a sua presença.
- Porque a idiota deve tê-lo trazido sem perceber! É óbvio que fez alguma besteira! Andou experimentando feitiços como se fosse bala. Umas 4 ou 5 pessoas devem ter conjurado um guardião espiritual, mas erraram no ritual, nas invocações, na lua, etc. Esse duende veio por engano, e como era muito pequeno e invisível, eles devem ter imaginado que simplesmente o encanto não funcionou. E ele ficou ali, abandonado e sozinho.
O pequeno duende percebeu que falávamos dele e que o víamos. Ficou imóvel nos observando. Nos olhava atento com muito medo, mas não se movia nem por um segundo. Quando passamos por ele, tentou se manifestar:
- Não! Não! Não entrem aí! Eu não posso deixar! Disse o pequeno guardião para nós.
-Quem mora aqui, perguntei.
- Minha mestra, respondeu prontamente.
Até pensei em brigar com ele, mas passou por apenas um segundo. Óbvio que ele não era um desafio e era apenas uma vítima de algo mal feito. Seguimos em frente e o rastro psíquico mostrou o pequeno apartamento procurado. Por fim, achamos quem queríamos:
Orquídea negra, dormindo tranquilamente em sua cama.
Sentei-me na beira da sua cama. Suspirei:
- Eu juro que já pensei seriamente em te matar só pelo trabalho que você já me deu, desabafei.
Lúcia entrou e olhou indignada pelo quarto:
-Olha isso, olha isso!! Dizia apontando para gravuras, escritos e papéis na parede.
-Tudo errado, tudo errado!! Reclamava alto, revirando os objetos de Orquídea Negra -Ela misturou tudo!! Reclamava Lúcia indignada.
De súbito Lúcia parou e olhou para o pequeno duendezinho que ficou na porta nos vigiando:
- De onde você é rapazinho?
- Su- Suffolk, gaguejou.
-Estás com saudades de casa?? Perguntou Lúcia, sacando um baralho de Tarô do bolso.
O pequeno smurf abaixou os olhos meio tristes, apertou as mãozinhas e assentiu com a cabeça em silêncio.
- Você quer voltar para casa, perguntou Lúcia.
O duende levantou os olhos meio surpreso com a pergunta, mas logo respondeu com a cabeça que sim.
-Então isto aqui é para você, disse ela, jogando uma carta de tarô na sua direção.
A criatura pegou a carta, sorriu e apertou a mesma contra seu pequenino corpo. A carta virou uma luz, e a criatura sumiu.
Espantei-me, achei que Lúcia tivesse desintegrado o duende.
- Mas o que você...
- O mandei de volta para casa, só isso, explicou. Aquilo que eu dei a ele era como um passaporte. O pobrezinho estava perdido e sozinho aqui na cidade e ele é um espírito da natureza. Ele devia estar sofrendo muito. Por isso estou com muita raiva dela. Ela fez feitiços e invocações que não entende, mistura as coisas, grunhia com raiva.
Voltei minha atenção para Orquídea Negra, então tentei dissuadi-la a deixar Mulher Gavião em paz:
- Quero você bem longe de Mulher Gavião e do Brasil, falava ao seu ouvido, com esperança que me escutasse em seus sonhos. Mas meu “diálogo” com Orquídea foi interrompido pelos acessos de raiva de Lúcia:
- Dá para acreditar? Ela está misturando tudo? Como é que não veio ninguém ainda pedir a cabeça dela? Reclamava Lúcia.
- Uma hora aparece, deixa pra lá, só vim ver se ela vai ficar por aqui ao invés de vir ao Brasil nos incomodar.
- Ela está dormindo, perguntou.
- Sim.
- O espírito ainda está no corpo?
- Acho que sim.
- Então sai da frente! Lúcia se adiantou.
Lúcia puxou o corpo astral de Orquídea Negra como se fosse papel. Então a jogou no chão e começou a bater nela como se estivesse (e creio eu estar) se vingando de tudo que havia visto de errado na casa: as magias mal feitas, as ofensas que ela devia ter causado a outras entidades. Ia dizer algo para ela parar mas, a verdade é que eu também estava cansado, e como não bato em mulher (não coloco aquelas bruxas no pacote) deixei Lúcia se acertar com ela. Orquídea Negra gritava e se debatia, sem entender nada do que estava acontecendo. Até que por fim retornou ao seu corpo e acordou gritando.
Olhou para os lados assustada e em soluços. Não entendia o que havia se passado. Um pesadelo talvez, pensou. Vi um maço de cigarros em cima da mesa.
-Tire essa mulher daqui, vociferou Lúcia.
- Você está nervosa, vá lá fora fumar um pouco, tomar um ar, falei ao seu ouvido. Trêmula, pegou os cigarros e foi fumar fora do prédio.
Enquanto isso, Lúcia tentava modificar as energias da tosca magia que Orquídea havia erroneamente invocado. Como Orquídea tinha formação em artes, se deu o direito de transformar desenhos e mantras seculares, o que anulava suas forças, seu fim, e ainda ofendia as entidades da wicca antiga.
Pensei em conjurar defesas para o lugar, para que Orquídea se sentisse segura e não quisesse ir embora de lá.
Mas Lúcia me interrompeu:
- Ela está sendo influenciada por um homem.
Estava cansado. Farto.
- Se vamos procurar esse maldito pela cidade toda me diga logo!
Lúcia riu, disse: - Deve ter algo dele aqui.
Revirou os papéis e achou uma foto de Orquídea Negra abraçada com um homem de pele e cabelos claros.Típico inglês.
-Deve ser este aqui. Vamos procurar uma peça de roupa dele. Logo encontrou uma camisa masculina.
- Está impregnada com a energia dele, podemos ir direto a fonte, comemorou Lúcia.
Já sabíamos quem era, e o que queria. Orquídea Negra insistia em namorar um homem casado e interesseiro. Tinha vontade de permanecer na Inglaterra e obter o visto permanente.
Mas seu “amado” já tinha mulher, e gostava de pular a cerca para dar golpes financeiros em outras mulheres. Orquídea Negra tentava dissuadi-lo a ficar com ela, mentindo para ele que no Brasil ela tinha imóveis, carros e outros bens. Mas na verdade era um trapaceiro pegando outro. Orquídea Negra não tinha nada. Havia gastado toda a sua herança viajando pela Europa e a farra havia acabado. A fonte secara.
Na cabeça dele, ele queria vir para o Brasil com ela, para vender os bens e ficar com o dinheiro. O problema que existia a grande possibilidade de baterem na porta de Mulher Gavião, sua irmã. Orquídea Negra tem a habilidade de se fazer de coitadinha, e no meio do seu teatro, apunhala as pessoas. Não interessa quem seja. Parentes ou não. Para evitar desgastes e infortuitos desnecessários, Mulher Gavião não queria vê-la nem pintada de ouro.
E mais uma vez, estávamos atrás de outra pessoa, mas felizmente sabíamos exatamente onde encontrar. Abri um portal e caímos dentro de sua casa. Ele estava tomando banho para ir numa festa.
- Vou tentar dar um jeito de ele não ter idéias de vir para o Brasil, pensei.
Por um momento achei errado, mas não liguei. Estava com vontade de terminar aquilo tudo, até ouvirmos alguém falar com voz grossa:
- Não ponham a mão nele! A voz era de um sujeito gordo, enorme, e fedido. Estava cheio de adornos de ouro no pescoço, braços, etc.
- É a entidade que o influencia - explicou Lúcia. Você não pode chegar num país estranho e sair por aí atacando os outros com sua magia, avisou Lúcia.
-O que você quer que eu faça então, indaguei já farto disso tudo.
-Peça primeiro permissão aos espíritos antigos daqui.
Meio a contra gosto mentalizei e logo senti uma forte energia me envolvendo, me tirando da casa de Johny.
Logo vi um monte de Druidas me cercando e me energizando em um local sagrado. Pedi a proteção e a autorização deles para trabalhar.

Expliquei a situação.
Um deles se aproximou, tocou minha cabeça e a minha vida passada que eu havia tido na Inglaterra veio à minha memória instantaneamente.
Me vi de armadura, lutando ao lado de um batalhão e convocando São Jorge para nos proteger. – São Jorge é muito poderoso aqui, explicou um dos Druidas, seus laços são fortes com ele. Pode pedir a proteção dele sempre que precisar, explicou. Depois, eles me envolveram em um manto de druida e se afastaram.
Entendi que eles haviam me aceitado.
Eles me aceitaram e me lembraram da minha vida passada naquelas terras.
Dos dias de glória e sangue.
De São Jorge.

Agradeci humildemente e abri um portal, para onde fui levado à festa que Jonhy fora convidado. Ele estava bebendo muito e rindo com seus amigos.
Nisso escuto o som de cavalos no plano astral se aproximando.
Cavaleiros chegavam depressa em armaduras prateadas, com o símbolo do dragão debaixo do cavaleiro.
Era a bandeira de São Jorge. Uma falange inteira.
Andaram ao nosso redor, até pararem no meio de nós dois.
Um dos cavaleiros que estava montado em um cavalo branco veio se aproximando na minha direção. Pensei que deveria ser o próprio São Jorge, pois sentia sua forte presença.
Em respeito me ajoelhei.
- De pé – disse o cavaleiro – não sou São Jorge!
Ergui a cabeça assustado, e de certo modo aliviado, pois não sabia como reagiria na presença dele.
- Quem é você? Perguntei curioso.
- Apenas um soldado da cavalaria de Jorge!
- São Jorge você quer dizer?
- Quero dizer o que eu quiser! Somos amigos, sou um de seus capitães! Me dirijo a ele do modo que quiser! Agora, deixando as apresentações de lado, o que fazemos com você? Você vem arrumando confusão desde a Espanha até aqui, onde soube.
- Nunca quis confusão, só queria encontrar uma pessoa.
- E quer mantê-la aqui certo?
- Se sabe tanto assim porque não vamos direto ao ponto?
Risadas.
- Claro, claro. Bom, não posso prendê-lo pois está encarnado, nem matá-lo, pois já estaria morto, então façamos um acordo:
Deixo Orquídea Negra presa na Europa por um bom tempo, já que São Jorge tem sua amiga em alta conta. Darei à irmã dela o que ela quer: dinheiro e amigos. E afasto o amado dela para evitar as influências de ir atrás da sua amiga. Tudo o que você tem de fazer é ficar bem longe de encrencas nesta ilha está bem?
Era um acordo sensato, mas algo me incomodava:
- Quer dizer que depois disso tudo essa víbora ainda vai ficar de boa?


O capitão aproximou seu cavalo de mim, se abaixou e disse sorrindo em voz baixa:
- Você dorme com uma víbora – disse se referindo a minha perigosa Lúcia - e mesmo assim não questiono seu julgamento. Vou dar o que é preciso para a “Víbora” não atrapalhar a sua amiga e de São Jorge. Se alguém vier cobrar algo depois não sei se poderei intervir. Mas que seja o mais tarde possível, já que poderá sobrar para você sabe quem.
Vi Lúcia se aproximando de mim, pegou em meu braço, ela e o capitão se entreolharam mas nada disseram.
- Então jovem cavaleiro, temos um acordo?
Estiquei a mão, nos cumprimentamos, selamos o acordo.
Não era bem o final que esperava, mas de certo modo foi o modo correto. Fiz uma abertura e entrei com Lúcia para o portal que nos levou para minha tribo. Estava farto daquilo tudo, cansado, e queria desfrutar um pouco a forma humana de Lúcia.

Na carne do teu inimigo prova o fio da tua lâmina, na carne da tua mulher prova a tua virilidade, e assim eu o fiz.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Orquídea Negra- Parte 01

Escrito por Xamã.



“E a noite quando o lobo uiva... ouça bem e você poderá me ouvir gritando”
-Ramones, Pet Cemetery

Em algum lugar do Brasil, noite.

Adormeço...
Sinto que não estou mais em meu corpo físico. Absorvo as energias a minha volta, respiro fundo.
Me concentro aonde devo ir: imagino uma luz me envolvendo abaixo de meus pés, caio dentro dela e surjo no céu, alguns metros acima da casa da Mulher Gavião.
Sem me importar que eu esteja caindo, me transformo quase que inconscientemente em um lobo branco, parando em pé de frente a sua casa.
Ponho minha pata esquerda a frente, e mais uma vez, até de repente voltar a ter um pé humano, e outro, voltando a minha forma física.
Passo pelos cães que não notam minha presença, atravesso a porta e me dirijo a seu quarto.
Quando entro, percebo que os gatos me vêem. Erguem a cabeça, dois miam, e a maioria apenas abre de leve os olhos e volta a dormir, como se minha presença não importasse.
De fato já me viram várias vezes fisicamente e espiritualmente, mas nunca deixo de me espantar que em espírito também sou notado por eles e, em meio a felinos com visão espiritual espalhados na tv, cômoda e dividindo a cama com sua dona, os deixo de lado por um minuto e me aproximo dela.
Aproveito que está dormindo para acariciar seus cabelos, e falar com ela de maneira gentil (duas coisas que costumam ser difíceis quando ambos estamos acordados).
- Como você está?-Pergunto.
Então escuto as reclamações de sempre, coisas do dia-dia, até que algo que ela diz chama minha atenção:
- Ando sentindo que Orquídea Negra tem pensado em mim ultimamente. Estou preocupada que ela resolva vir pra cá. Não quero essa mulher aqui, se puder dar uma olhada, por favor.
- Claro, sem problemas, só vou ver se a Pratinha está no escritório.
- Tudo bem, obrigado. A Pratinha não apareceu mais.
Orquídea Negra é a irmã mais nova da Mulher Gavião. Nunca se deram bem, e apesar do Elo Cármico que as obrigou a nascerem na mesma família, após a morte dos pais, Mulher Gavião que havia enterrado sozinha os dois, limitou-se a ter o mínimo de contato com Orquídea Negra.
As últimas notícias que Mulher Gavião tivera de Orquídea Negra, eram de que ela “tentava” praticar Wicca moderna e que estava na Europa. Orquídea tem afinidade pela Inglaterra, mas com a crise na Europa, a xenofobia típica dos ingleses se acirrou e ficou desempregada, para não “roubar empregos” dos ingleses.
Assim, se refugiara recentemente na Espanha, onde as duas herdaram nacionalidade pela mãe. Orquídea Negra torrou sua herança nas suas andanças na Europa e agora desempregada e sem dinheiro, estava vivendo de favores de amigos. Seu desejo era se casar com um inglês, para obter a cidadania inglesa e para isso, estava planejando viajar com o namorado inglês e interesseiro para o Brasil, onde iriam atormentar Mulher Gavião com seus problemas. Mulher Gavião já havia sido alertada sobre essa possibilidade:
-É a velha história da Cigarra e da Formiga. Ela curtiu, gastou, dançou e viajou. Eu fiquei em casa, trabalhando e guardando. O inverno chegou e ela está sem nada. Mas ela vem com uma caneca na mão e uma faca na outra, para me apunhalar. A vida inteira foi isso. Não os quero aqui, concluiu Mulher Gavião para o Xamã.

Orquídea Negra tinha formação em Artes. Não se sabe porque, resolveu bancar a terapeuta wiccana na Europa. Misturava tudo. Como não tinha base e nem conhecimento adequado, seu empirismo causava danos e ofendia as entidades antigas da magia celta.
Para ser bruxo, roupas bonitas e gestos curiosos podem fazer sucesso em uma festa à fantasia, mas para trabalhar com magia de verdade, isso é supérfluo, banal. Orquídea Negra assim, colecionava poucos amigos e muitos inimigos poderosos. Mas com a mente imatura e corrupta, ainda não enxergava os males que vinha fazendo.

Pratinha é a gata cinza com branco da Mulher Gavião, que conversa por telepatia conosco.
Ela também foi a primeira gatinha que se aproximou de mim quando fui para casa de mulher Gavião.
Eu e Pratinha dormimos, comemos e brincávamos juntos.
Enfim, ela é minha gata preferida, e tamanha é a afinidade que temos que depois de um tempo passei a escutar o que ela dizia. Até aí normal (dentro do possível de normalidade), já que gatos podem ver o outro lado, o lado espiritual. Gatos são Portais do outro Mundo naturalmente.
Qual o problema em falar? Porém a Pratinha conversa conosco quando estamos acordados também, e eu entendo tudo.
Levanto da beirada da cama, alimento por uns segundos que ela está dormindo no escritório, mas a esperança some quando abro a porta e não a vejo lá. Resmungo um “merda”, tento me conformar, a minha gata preferida adora sair e caçar, adora ficar sumida por meses e depois voltar.
Ela diz ficar entediada em casa então some mundo afora, e que se dane se estamos com saudades. Nisso sinto algo estranho do lado de fora, fazendo-me esquecer da saudade felina.
Uma das precauções que tomei quando reaprendi a mexer com magia, foi erguer defesas na casa, defesas estas que se tornaram mais fortes ainda quando entidades antigas, bondosas e poderosíssimas começaram a proteger Mulher Gavião e sua casa. Mas daí vem o eterno problema: mesmo sendo forte e segura sempre haverá alguém disposto a transpassá-la, e desta vez não foi diferente: Alguém está tentando passar.
Retorno na forma de lobo, dou um salto para frente, saio para o quintal, me concentro para sentir a energia a minha volta, percebo algo irregular em uma das extremidades da barreira, seguido de um fedor horrível de carniça.
Corro em sua direção, salto diretamente sobre a coisa.
É noite, não consigo ver bem quem ou o que é.
Parecia mais um trapo velho, mas suas mãos ardem, queimam.
Sem pestanejar, abocanho aquilo.
Mordo e rasgo em pedaços, a coisa grita alto. Eu uso mais força, até os gritos pararem e eu sentir sua forma se despedaçar, esvaecendo como fumaça.
Dou um uivo alto, tanto para celebrar minha vitória quanto para demonstrar que estou por perto, um aviso em alto e bom som, mas meu júbilo é interrompido pela visão de um outro lobo.
Uma fêmea cinza, parada alguns metros, me fitando como se estivesse me analisando.
Lúcia, minha amada Lúcia.
- Defesas mágicas para casa - diz ela enquanto caminha na minha direção - gata tagarela, e claro, a primeira coisa que fez foi ver sua amiga e bancar o lobo mau do tamanho de um cavalo contra um pedaço de nada. Eu sempre me pergunto se deveria sentir ciúmes, observou Lúcia, a Loba.
Embora até goste desse tipo de humor seco, sei que há um fundo de verdade no que escuto, há uma ponta de ciúmes que deve ser apenas a ponta de um iceberg enorme. Então enquanto vou ao encontro dela tento desconversar:
-Ah, eu sou homem, tenho complexo natural em relação a tamanho, e o lobo mau nas histórias tinha pelo preto, eu sou branco. Além disso, sou digamos... meio lobisomem. Daí devo me apresentar no tamanho normal. Ah sim, e minha amiga é uma tigresa, casada e com filhos. Minha preocupação é diferente de interesse.


Tocamos-nos, focinho com focinho, cheiro seu pêlo, seu pescoço, me sinto em paz, feliz.
-Agora, deixa isso de lado, quero saber de você, quero matar a saudade de você.
Ela acena com a cabeça e esquece do assunto, andamos um pouco pelo lado de fora da casa, até eu me convencer de que está tudo bem, vejo alguns espíritos aliados e os cumprimento.
Mas ao longe, não quero envolvê-la mais do que já a obrigo a se envolver:
- Lúcia, vamos embora?
- Para onde? Ver sua tribo?
- Depois, primeiro preciso encontrar alguém.
- Sei que vou me arrepender de perguntar, mas quem?
- Uma mulher, Orquídea Negra, irmã da Mulher Gavião.
- Além de ser uma mulher é irmã da sua amiga? Você sabe ser romântico não?
- Me desculpe, mas eu tenho coisas a fazer, se quiser pode ficar na tribo.
- Óbvio que não! Eu vou com você!
-Certo, vai ser rápido, não se preocupe.
-Para onde vamos?
-Espanha.
“Vai ser rápido, não se preocupe.” Se Deus estivesse me escutando nessa hora, provavelmente estaria rindo e eu não teria engolido sete pessoas vivas.
De certo modo eu devia ser grato por não me lembrar dessas coisas quando eu acordo.
“Não te esqueças que eu te dei meu coração”
- Placido Domingo, Core 'ngrato
Espanha, madrugada.


Mais uma vez mentalizo uma luz envolvendo a mim e Lúcia, caímos dentro dessa luz.
Abri um Portal Xamânico e viajamos por dentro dele. Quando o túnel de luz se foi, paramos em frente à Catedral de Santiago de Compostela na Espanha.

Em frente ao magnífico monumento, não víamos ninguém: nem espíritos e nem vivos.
- Eu sempre gostei deste lugar. A catedral é linda, observei.
- Tá, ta bom, vamos atrás de Orquídea Negra e vamos logo pra casa, apressou-se Lúcia.
- Melhor não andarmos por aí como lobos gigantes, podemos chamar muita atenção. Vamos usar uma forma humana, observei.
- Não, eu vou ficar assim, disse Lúcia.
-Tudo bem minha loba amada, eu não sei porque nunca me deixou te ver na forma humana mas seja lá como você for continuarei te amando igual, expliquei a ela.
- Não adiantaria nada meu lobo amado, pois a primeira coisa que você faz é me esquecer quando acorda, observou Lúcia.
-Olha, já discutimos isso, é involuntário da minha parte, ok? Se não quer mostrar sua forma humana eu respeito, mas pelo menos diminua seu tamanho para o de uma loba normal, concluí.
Assumi a forma de um cavaleiro medieval europeu, trajado uma armadura preta e dourada. Lúcia diminuiu seu tamanho para o porte de um lobo normal.
No pátio da igreja onde estávamos não passava ninguém. Queria perguntar por informações, mas nem uma alma penada sequer aparecia.
- Não sabia que os espíritos dormiam a esta hora, observei.
- Claro que não seu bobo, só devemos achar um meio de falar com eles, explicou Lúcia.
- Hum, minha mãe tinha um livro de São Cipriano, onde se descrevia um ritual de ficar dando voltas ao redor de uma igreja, até uma alma aparecer.
- Essa é sua idéia? Andar ao redor da Catedral? Você já viu o tamanho dela? Reclamou Lúcia.
- Tem alguma idéia melhor?
- Que tal uma invocação? Podíamos desenhar um pentagrama na...
- Pentagrama? Na porta de uma igreja? Perguntei espantado.
- Claro, porque não? Eu odeio cristãos mesmo! Disse Lúcia.
- Lúcia, você...
De súbito vemos um homem com roupas da guarda espanhola, com uma lança em riste caminhando firme em nossa direção.
-Alto! Quem vem lá!? Perguntou o guardião espanhol.
Me chamo Miguel Colaço, estou à procura de uma mulher aqui na Espanha. O senhor poderia me dizer onde posso obter essa informação?
- Que tipo de mulher espera encontrar na frente da catedral a esta hora? Indagou o guardião espanhol.
- Ela é encarnada, se chama Orquídea Negra.
- Encarnada?-O guarda baixou a lança e coçou a cabeça para pensar a respeito, e nisso se ouviu um grito alto ao fundo e um homem acompanhado de cerca de 10 soldados com o mesmo uniforme correu à minha frente.
- Soldado Gonzalez! Que se passa aqui? Perguntou o militar.
- Me chamo Miguel Colaço - repeti cortando a fala do soldado – procuro por uma mulher encarnada que vive aqui na Espanha.
Provavelmente a julgar minhas roupas o chefe dos soldados concluiu que eu deveria ser um nobre ou coisa parecida. Então fez uma saudação militar e depois me estendeu a mão.
- Sou o capitão Castillo, chefe dessa guarnição. Meu turno está movimentado hoje! Ao que parece surgiram do nada, no meio do pátio da Igreja, duas enormes feras gigantes que afugentaram todas as pessoas! As pessoas correram, a catedral foi fechada e me reportaram o fato, que agora estamos atrás das temíveis bestas.

De súbito eu senti um leve mal-estar, Lúcia não falou mais nada desde que os soldados haviam chegado e eles deviam achar que era uma loba apenas e mesmo com as palavras do capitão não abriu a boca. Os olhos dele pareciam ler o que eu estava pensando, mas ao tentar esboçar uma reação, ou uma desculpa, ele continuou:
-Enfim, ao que parece elas se foram, não é mesmo? Concluiu com um discreto sorriso. Mas me diga Dom Miguel, o que deseja saber vindo atrás dessa mulher?
Ignorei o Dom, embora tivesse certeza que era uma maneira educada de me tratar e não uma ironia. Sabia que minha bisavó era da Espanha, de onde herdei o nome Colaço mas pouco sabia da cultura e do trato social.
- Apenas saber aonde está, e se está bem. A irmã dela mora longe e está preocupada com ela.-E fato era de que embora existissem vários “poréns” na minha afirmação, não havia mentira nenhuma no que havia dito.
- Somente isso?
-Tem minha palavra Capitão.
-Bueno, vamos resolver isso então.
Ao que conversávamos havia perdido a noção do que ocorria a minha volta, pessoas de várias épocas voltavam a caminhar pela praça. A Catedral estava reaberta novamente, então caminhávamos em sua direção.
- Ah sim: seu cão fica do lado de fora, avisou o Capitão Castillo.
- Não é um cão, capitão, é uma loba, expliquei.
- Uma, fêmea? Claro! Então tudo muda! Pode trazê-la então, o problema são os machos! Entram e urinam em tudo! Observou o feliz capitão espanhol.
Andamos por um corredor comprido, e o capitão me contara que sua família havia servido por anos na Espanha. Que se sentia honrado de manter a tradição tanto vivo quanto morto no antigo reino. Comentou orgulhoso que tinha um descendente encarnado trabalhando durante o dia na restauração da Catedral.


A guarnição que comandava também havia lutado com ele em vida. Eram todos velhos amigos, irmãos de armas. Era um homem forte, de olhar franco. Com cabelos e olhos pretos, além de uma barba rala e de um andar firme. Mas que acusava um leve coxear. Talvez um ferimento antigo de guerra do qual ainda não tivesse abandonado da vida terrena. Talvez para alguns seja difícil entender, mas para um guerreiro, cicatrizes de batalha são motivo de orgulho, o que talvez pudesse explicar o porquê de ainda manter tal lembrança em seu caminhar.

Paramos de frente a uma enorme porta de madeira trabalhada, de dentro da Catedral de Santiago.
-Agora , disse o capitão , devemos esperar um pouco.
Aproveitei a pausa e me abaixei para acariciar Lúcia que se negava a virar humana, estava muda e provavelmente aborrecidíssima comigo.
-É um belo animal señor!– observou um dos soldados. Era gordo, e tinha uma cara de estúpido.
- Sim, muito bela! – respondi enquanto acariciava Lúcia.
-Deve ser uma bela companheira!- retrucou, e dessa vez abria um sorriso estúpido, com os dentes arreganhados enquanto balançava a cabeça freneticamente, então entendi o que ele REALMENTE queria dizer sobre Lúcia ser bela e companheira.
- Oh não! Não! Não! Não eu...Gaguejei tentando explicar o inexplicável.
-Sanchez!-interveio o capitão - Por Deus homem! Pare de constranger o pobre rapaz! Como ousa falar um absurdo desses? Nem todos são como você!
-Acredite você, rapaz, que este monte de estrume quando vivo gostava da companhia de vacas, cabras e ovelhas! Foi uma dificuldade tirar isto dele! Toda vez que alguém aparece com um animal aqui ele imagina uma besteira dessas!Explicou o Capitão.

Eu havia ficado com um leve mal-estar da confusão de nossa chegada, mas agora estava totalmente desconfortável com a situação. Claro que eu nunca havia visto a forma humana de Lúcia, embora soubesse que era humana. Mas sempre que tivemos relações amorosas foram na forma de lobo. Ambos na forma de lobo. Logo, diferente dele, nunca havia praticado zoofilia. Ainda assim, havia um fundo de verdade na insinuação daquele infeliz, e era isso que me deixava constrangido.
Para piorar, Lúcia para se vingar (creio eu) começou a abanar o rabo, cheirar minha virilha e a pular em cima de mim, querendo lamber meu rosto, o que fez os soldados rirem ainda mais.
- Silêncio vocês todos! Sanchez! Peça desculpas imediatamente! Gritou o capitão tentando encerrar o constrangedor assunto.
Com a bronca, todos silenciaram, então o gordo sorriu mais uma vez, estendeu a mão e pediu desculpas. As aceitei imediatamente, queria dar um fim naquilo tudo de uma vez.
- Eu sei que o senhor nunca... – e fez um gesto simulando sexo – com sua cachorrinha, só estava brincando, me perdoe!
Apenas balancei a cabeça, não queria mais ficar naquela maldita conversa, alguns soldados deram um tapa nas costas dele. Capitão Castillo pôs a mão no meu ombro e disse:
- Ele é apenas um pombo gordo, ignore-o!
- Capitão eu...
-Ah finalmente! Nossa vez!
Entramos em uma sala pequena, mas com um teto que parecia chegar ao céu, com uma pilha de livros velhos, lembrando muito uma biblioteca medieval. Lúcia ficou do lado de fora. Enquanto eu olhava boquiaberto o local, o Capitão tomou a palavra:
- Velho desgraçado! Faça algo útil na sua pós-vida miserável! Ajude Dom Miguel a achar quem ele quer! Disse dirigindo a palavra a um idoso bem enrugado que se debruçava sobre um enorme livro em uma mesa central na ante sala.
O velho não se alterou.
Percebendo a insistência do Capitão Castillo, resmungou:
- Há 3 tipos de humanos que eu odeio: Índios, Ingleses e Sul Americanos! E você, meu rapaz, tem os três! Anunciou muito bravo com a minha presença.
“No além, seja educado acima de tudo.” Meu mestre sempre me falou isso. Ia esboçar uma resposta, mas novamente ouvi o capitão:
- Maldição! Se não gosta deles então dê o que ele quer para que saia logo da sua frente!
Pensativo, o velho concordou com o Capitão. Então pesquisou o nome que lhe dei.
- Viu o que eu falei? Só me dão trabalho! Ela não está aqui! Não está aqui! Repetiu .

Então ele pegou um pedaço de papel, e começou a escrever algo: - Nosso poderoso senhor - disse, fazendo o sinal da cruz - colocou homens e mulheres de bem na Espanha. Depois jogou bêbados, retardados, miseráveis, prostitutas e todo tipo de devassas e bastardos numa ilha!!Falava enquanto escrevia freneticamente.
Sua mão trêmula me entregou o papel que havia escrito. Haviam letras que eu não entendia e um desenho que embora se mexesse, de certo modo fazia sentido.
- ...E Ele batizou aquele antro de desgraça como Inglaterra! Concluiu o velho livreiro.
E era para lá que eu deveria ir.

Inglaterra.