terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Andarilho


O Andarilho

O Grande Espírito veio até mim no Plano Espiritual.
Ele me carregou em suas garras até o oriente, então me soltou em meio a neve branca.
O Grande Espírito veio na forma de uma grande coruja escura com o rosto branco. Permaneceu em silêncio, me fitando do alto do galho de uma árvore.

- Grande Espírito – disse-lhe prestando reverência – sou profundamente grato por sua presença, embora seja indigno dela, mas ainda não entendo o motivo de estarmos aqui.

- Apenas observe jovem Xamã. Porém não interfira, o que verá não pode ser mudado. Explicou a sábia ave do alto de seu galho.

Então seus profundos olhos negros mudaram de direção e eu os acompanhei. Vi uma pequena vila japonesa, de onde ecoavam gritos , barulho de tropas, fumaça.

Soldados, samurais. Assim como eu fui um dia. Um ataque Samurai a um Templo Japonês. Os monges estavam sendo massacrados sem piedade.

As pessoas estavam amontoadas no pátio da vila, jogadas no chão, sendo espancadas, estocadas com lanças e espadas. Os gritos, o horror , o sangue em seus rostos.

No meio das pessoas atacadas permanecia um grupo de monges em silêncio mesmo quando agredidos. São insultados, mutilados, cuspidos. Apesar das agressões, se mantém firmes.

Por fim, entre as labaredas, sangue e gritos agonizantes, outro monge surge com o rosto em pânico e corre na direção de um dos Samurais que comanda o ataque. Ele gesticula, chora, fala, se ajoelha. O Samurai ri dele com desprezo e o enxota como um cão sarnento.



O Samurai por fim grita uma ordem, e um dos monges é arrastado para o meio do pátio. Um jovem monge, deve ter menos de 18 anos, apenas um garoto, e assim será para sempre, pois o jovem monge é trespassado por uma espada. Sangue brota de sua boca e peito. Por fim cai morto.

O monge que acompanha o samurai grita, corre em direção ao jovem morto. O olhar de pânico dá lugar a dor, gritos, lágrimas. O monge aperta o corpo inerte do jovem morimbundo.

Alheios a isso, os samurais apenas riem, então começam a matar a todos, deixando vivo apenas aquele monge, agarrado a um corpo sem vida.

O líder samurai ser aproxima do monge que fora poupado, joga-lhe umas moedas no seu rosto que caem no chão sem sentido. Mais insultos.

O monge, em um momento de loucura e fúria agarra-se a perna do samurai. Tenta derrubá-lo, mas como não consegue é chutado, espancado. O chefe do exército Samurai impede que o matem. Cospe no corpo ferido do monge, em seguida urina sobre ele.

Enfim, começam a atear fogo na vila e vão todos embora, deixando apenas um homem vivo. O monge que entregou seus amigos, sua família e sua vida em troca de umas poucas moedas.


Eu observava uma cena que já havia acontecido à algumas centenas de anos. Embora eu não tenha parte nessa história, as guerras japonesas sempre foram muito cruéis e sanguinárias. Eu já fiz parte disso.

A neve branca foi consumida por um rio vermelho de sangue, mesmo assim não consegui me mover. Mil coisas passaram em minha cabeça, lembrei-me dos tempos de guerra, dos atos indescritíveis, vergonhosos, mas me sentia incapaz de pronunciar isso ao Grande Espírito, embora soubesse que ele era capaz de ler meus pensamentos.

- O nome dele não importa mais - disse o Grande Espírito se referindo ao Monge sobrevivente - ele viveu até os 86 anos. Aquele jovem que foi morto na sua frente era o seu filho, e os demais monges eram seus irmãos. Ele traiu a todos, por cobiça e medo da morte. Foi condenado em vida a vagar só, com a lembrança de sua traição. Quando morreu foi proibido de ver seu filho e irmãos.

O líder do seu Templo o condenou a vagar pela Terra como um espírito andarilho, e ajudar a quem pudesse. Ele jamais pode parar. Ele jamais pode deixar de ajudar a alguém, nem deixar de responder a uma pergunta que saiba a resposta. Após ajudar certo número de pessoas, ele deverá voltar no ano do cão aonde tudo começou, e pedirá perdão pelos seus erros.

Antes que pudesse perguntar o motivo de eu estar lá, o Grande Espírito respondeu:

- Sua amiga Mulher Gavião procura respostas no Oriente, conforme o Grande Pai disse a ela. O monge poderá ajudá-la nisso.

- Mas como ela falará com o monge, Grande Espírito? -Perguntei.


- Ela não terá com ele Xamã, mas você sim. Use os dons que o Grande Pai concedeu a você.

Ajoelhei-me mais uma vez em reverência e gratidão.

- Sou profundamente grato por sua sabedoria Grande Espírito, embora seja indigno dela.Repeti.

- Minha sabedoria se estende a quem tem ouvidos preparados para escutá-la, agora - disse dando um salto do galho aonde estava - devemos partir.

E com um espetacular bater de asas negras ,tudo ficou escuro, então despertei do meu sonho. Acordei com as imagens frescas e sabendo que deveria ter com o Andarilho.

Certo dia, no Mundo Espiritual.

Sento no chão próximo a minha aldeia, e peço em uma oração silenciosa, sabedoria para buscar o que desejo, ver o que é preciso.

Pego um pouco da terra e jogo ao vento, para que assim como ela eu seja levado por ele e consiga ir para o caminho certo.

Me concentro, mentalizo o antigo monge japonês, e segue-se uma luz. Sou jogado aos céus, estou em companhia do Grande Espírito do céu. Sinto meus braços se transformando em asas, me torno uma ave.

Voando, observo de longe o monge amaldiçoado que sobreviveu ao massacre no Japão. Vejo-o andar por vários caminhos, e então começo a entendê-lo melhor.

Ele vaga pelo mundo todo, sem nunca parar, sem nunca descansar.



Embora uma pessoa física e normal não o enxergue, ele anda como se fosse um encarnado. Apesar dele ser espírito, não se move como tal (ou talvez lhe seja proibido, não sei) só sei ele que saiu do Japão de barco, e chegou do outro lado do Atlântico viajando como uma pessoa comum. Tem hábitos de uma pessoa viva. Age como se precisasse dormir, comer e descansar de uma caminhada. Talvez continuar a sofrer as agruras físicas façam parte do seu castigo.

E agora eu o vejo caminhando.

O trecho por onde passa me é familiar. O conheço na vida física. Então fica claro do porquê fui procurado pelo Grande Espírito para ver o começo da jornada do Monge.

Sinto que preciso acordar.

Agradeço em pensamento mais uma vez pela ajuda do Grande Espírito, então vôo rapidamente para outro lado, aonde reconheço de cima a casa de Mulher Gavião. Faço um mergulho profundo na casa em direção ao meu corpo mortal.

Acordo.

Me levanto assustado, não lembro de nada, só sei que devo me levantar.

Ainda não entendo bem a situação, preciso sair de lá, quero sair sem fazer barulho, mas Mulher Gavião percebe minha agitação. Ela diz algo mas não presto atenção, na verdade nem entendo. Saio, ponho meus sapatos e vou para a estrada caminhar.

O dia ainda está nascendo, somente quando o sol fica mais alto percebo que já estou caminhando faz um tempo. Me irrito, praguejo e tomo o caminho de volta pra casa.

Após alguns minutos voltando para casa vejo um homem japonês, imundo, com um saco amarrado nas costas e um pedaço de pau na mão, caminhado na direção contrária, vindo ao meu encontro.

Não estou com saco para conversas e tento ignorá-lo. Acelero o passo e quando estou próximo a ele o vejo abaixar a cabeça. Pensei ser um sinal de respeito e já ia desejar-lhe um bom dia mas ele diz:

- Renuncie a este mundo sujo e junte-se a Terra Pura.

Apesar de entender as palavras não entendo o sentido.

- O quê? –perguntei.

Seus olhos se arregalaram, virou-se em minha direção, pegou em meus braços. Me assustei com sua inesperada atitude e já estava pensando em chutá-lo ou coisa parecida para que me soltasse, mas antes disso me libertou e ajoelhou-se:

- Você me vê! - Você me vê! Disse exultante.

“Andarilhos, são todos malucos.” - Pensei.

- Em que posso ajudá-lo?!-Dizia ele com olhar alegre em um rosto sujo.- Qualquer coisa! Basta perguntar e se eu souber a resposta lhe direi imediatamente.

- Você é louco?

- Não! Não! Apenas estou feliz!

- Sei. Bom, passar bem!

E o deixei no chão ajoelhado. Mas ao me virar percebi que se levantara e pôs a mão no meu ombro.

- Por favor!-Insistiu.

E quando olhei para ele seu olhar era sério.

- Quanto mais eu ajudar alguém mais próximo estarei de casa!Completou o andarilho.

Mesmo a contragosto eu podia sentir o gosto da verdade em suas palavras, havia sentido em sua loucura. Sua mão permanecia em meu ombro e quando a toquei senti um frio repentino, e ao mesmo tempo um turbilhão de memórias do andarilho preencheram minha cabeça, para em seguida escaparem de novo, como uma bexiga furada esvaziando-se rapidamente.

- Yuji.-disse-lhe - Seu nome é Yuji S...

- Meu nome não é mais meu, só o terei de volta quando for a hora. Até lá não tenho nada a não ser minha roupa do corpo e essas coisas que trago comigo.

Me passou pela cabeça que ele tinha hábitos dos vivos.

- Está com fome, frio?

Mais uma vez um sorriso no rosto.

- Queria um cigarro, tem aí?

Estranhei a pergunta de início, mas depois de séculos vagando pelo mundo é bem aceitável adquirir hábitos contrários aos de um monge. E na verdade ele não era mais um monge a muito tempo.
Poderia levá-lo até a casa de Mulher Gavião mas não queria expô-la naquela situação, e também não sabia como as defesas da casa reagiriam contra ele nem as entidades que habitam lá. Na dúvida, era melhor mantê-lo aonde estava.

- Daqui uns minutos eu volto, você me espera?Indaguei.

- Eu preciso de você, claro que espero! Ah sim, se puder trazer um incenso também seria ótimo!

Volto pra casa, peço a Mulher Gavião incenso e cigarros. Ela me entrega os dois e mais uma caixa de fósforos sem questionar. Agradeço e volto correndo para a estrada. Ele ainda me espera, agora debaixo de uma árvore.

- Estava quente!-Explicou-me sentado na sombra.

Acendi o cigarro e incenso e os dei para ele.

- Então, se puder fazer algo por você. Tem alguma dúvida?Perguntou o andarilho.

- Tenho dúvidas se você é um demônio querendo negociar.Confessei.

Seu rosto não se alterou.

-Afinal- continuei- o que um japonês estaria fazendo aqui? Tão longe de casa?

- Você é uma raposa não? Uma raposa demônio de nove caudas! Há! Já vi você vagando por aí! Claro que sem uma explicação você não me perguntará nada! Pois bem! Aqui, neste país ! Você sabe quantas pessoas podem me ver? Sabe quantos centros espirituais eu posso rondar em troca da minha liberdade? Milhões de vezes mais do que se ficasse no Japão! Eu andei pelo mundo todo e garanto que esperando lá eu nunca conseguiria me livrar do meu castigo! Quando os europeus chegaram, quis vê-los de perto. Escutei suas histórias sobre pessoas que liam as mãos e faziam adivinhação com papeis! Se fosse verdade aquilo então porquê não iria atrás dessa gente? Quem sabe eles não iriam me ver também? Então entrei no barco dos europeus e vago pelo mundo desde então! Se não acredita em mim me deixe ir embora!

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Uma coruja surgiu sob um toco de madeira, me olhou profundamente como se esperasse que eu falasse, e por um segundo jurei que esperava escutar uma pergunta minha.

- Estou à procura de respostas para resolver algo que começou no Japão e continua até hoje aqui. Digamos que seja uma questão familiar. Disseram-me que a resposta está no Japão, mas exatamente o quê eu devo procurar lá?


Risos.

- Isso é muito importante para você?-Indagou-me.

- Sim.

- O que você espera disso tudo?

- Que se resolva, ou que se exploda de uma vez, tudo se resolve uma hora, por bem ou por mal. Agora vai me responder ou não?

Seu rosto ficou sério novamente, então voltou a falar:

- A raposa é capaz de amar mas continua sendo uma raposa! Pois bem! Eu jurei que estava zombando de mim, mas sei que é uma pergunta séria. Vocês estão no caminho certo, mas estão esquecendo dos detalhes. A resposta está nos detalhes. Nos detalhes! Procure nos detalhes! Lá estará a resposta que procuram.

- Detalhes?

- Isso eu não sei, apenas compreendo é que nos detalhes estarão as respostas.

- Tem algo a mais para me dizer?

- Só sei disso.

- Então obrigado, boa sorte e adeus.

- Espere! -Gritou- Por favor, quem lhe pede um favor agora sou eu embora não tenha nada a lhe oferecer.

Um caminhão estava vindo em nossa direção. Me afastei da estrada mas o monge continuou de joelhos. O caminhão o atravessou, e após a poeira se abaixar o vi novamente. Estava lá esperando minha resposta.

- Está bem, o que você quer?Perguntei já meio desconfiado.

- Na minha infância-disse- havia muitas lendas sobre a raposa-demônio, sobre como ela brincava com os homens, como usava os seus truques de raposa para trapacear e se divertir as custas dos humanos.

Ia interrompê-lo, pedir que parasse de rodeios, então ele disparou:

- Meu filho está longe de mim, está junto dos monges que morreram pela minha traição, nem seu nome eu posso pronunciar mais. Sabe o que é ficar séculos sem ver seu filho? Sem sequer pode falar o nome dele? Eu só queria que ele soubesse que eu sinto muito pelo que fiz, e anseio em vê-lo novamente um dia, por mais que tema que ele não me perdoe, que me odeie eu queria que ele soubesse como me sinto. Diga a ele que eu ainda me importo muito com ele. Eu sei que você tem o dom de abrir portais e ir para qualquer lugar. Por favor, eu lhe peço.

Então me lembrei do meu pai, longe de mim como sempre esteve, lembrei do dia em que nos vimos de novo, e ele me perguntou se eu o odiava.

- Se não sei nem o nome dele como achá-lo?

- Em seus sonhos, ele é o mais jovem do grupo assassinado.

E as palavras dele me lembravam vagamente de algo.

- Não sei se me deixarão falar com ele a respeito de uma mensagem sua.

- Confio em seus dons de raposa.

Queria por fim aquela conversa, dois loucos em uma estrada poeirenta, aquilo era ridículo.

- Certo, farei isso, algo mais?

- Não, obrigado.- disse curvando-se e se afastando respeitosamente.

Apontei para uma direção.

- Ali- Indiquei- é uma cidade repleta de espíritas, umbandistas etc, será fácil verem você lá. Adeus e boa sorte.

E o monge andarilho saiu na direção apontada e eu voltei para casa.

O dia ainda estava nascendo mas já sabia que no outro plano, eu tinha uma promessa a cumprir.

Aqui se faz, aqui se paga.
Um monge traiu todo o seu povo em troca de moedas e estatus. Pela sua ganância, todos pereceram de forma cruel, inclusive o seu filho. Para pagar, ele deve caminhar pelo mundo, ajudando o máximo de pessoas e espíritos.
Um dia, depois de ter ajudado o máximo de pessoas, então ele poderá retornar para sua terra e rever seus entes queridos.

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